Ditadura Empresarial-Militar

 

Leonardo Eugênio da Silva Pinto[1]

            Embora não seja recente os estudos que tratam da relação do empresariado brasileiro com o golpe de 1964 e os governos da ditadura empresarial-militar, nos últimos anos têm sido produzidos trabalhos que se debruçam a respeito dessa relação, expandindo uma série de novas discussões e abordagens a respeito do período[2]. Neste texto, traremos uma visão geral desses estudos em uma tentativa de introduzir o debate para um público mais amplo.

Empresariado e o golpe de 1964

            O trabalho de René Armand Dreifuss[3] é muito importante para entender as articulações do empresariado em conjunto com os militares nos anos anteriores e posteriores ao golpe de 1964. O cientística político demonstra um verdadeiro complexo de relações políticas entre militares da ESG, empresários e tecno-empresários nos think tanks IPÊS/IBAD. O autor, inclusive, chama atenção para os estudos que superestimam a ação dos militares frente ao setor empresarial no golpe e na condução da ditadura, Dreifuss demonstra que essa relação se dava na base da complementaridade.

            Dessa maneira, é preciso ficar evidente que a condução de toda a campanha de desestabilização do governo de João Goulart e o golpe do dia 31 de março de 1964 não foi puramente militar, mas encabeçada, em grande parte, pelo empresariado nacional, multinacional e associado. Os métodos que se davam a campanha do IPÊS contra Jango na opinião pública variavam, iam desde publicações de editoriais nos principais jornais e revistas, folhetos nas ruas, livros, uso do rádio e o cinema. Esse último chama muito atenção em diversos aspectos, desde a forma como eram feitos esses filmetes, o financiamento (já que produzir audiovisual na época não era algo simples), a produção e como foram veiculados. A jornalista Denise Assis possui um trabalho de referência[4] quando se trata do estudo do cinema enquanto arma de propaganda política contra o presidente Goulart, em seu trabalho, por exemplo, demonstra a forma como se dava as transmissões dos filmes na batalha pela hegemonia no campo da subjetividade da opinião pública.

A empresa Mesbla S.A doava os equipamentos de projeção e empresários e industriais organizavam sessões para os funcionários. Outro setor de rara eficiência na divulgação desses filmes foi o sistema 5 S. O Sesi, o Senac e todos os demais integrantes reuniam alunos e trabalhadores para as exibições, aliando a propaganda anticomunista a uma fiata americana, na tentativa de torna-las menos indigesta. Até a televisão tratou de exibir esses filmes no progama atualidades popular de Silveira Sampaio. As classes mais abastadas puderam vê-los nos clubes de serviços, como Lions Clube e Rotary Club, e em clubes sociais, por exemplo, o Monte Líbano, em São Paulo. Disseminados pelo interior do país, chegaram a sindicatos, igrejas e até em pracinhas. (ASSIS, 2001 p.42-43).

 

            A jornalista menciona a Mesbla S.A. no trecho acima, porém, não só foi essa empresa que apoiou a produção e transmissão dos filmetes e outras formas de propaganda anti-Jango, Denise Assis menciona um esquema de doações ao programa do IPÊS na qual figuram 125 pessoas físicas e 95 jurídicas, sendo 5 responsáveis por mais de 70% do financiamento[5], dentre essas empresas: Listas Telefônicas, Light, Cruzeiro do Sul, Refinaria e Exploração de Petróleo União e a Indústria e Comércio de Minério (Icomi). Além das empresas citadas nas doações para o programa de propaganda, o IPÊS possuía uma capilaridade sólida no setor empresarial e entre suas lideranças, onde obtinham o financiamento de suas ações, como demonstra o historiador Demian Bezerra de Melo[6]:

[...] o IPES contou inicialmente com o financiamento da Indústria e Comércio de Minério (Icomi), da Refinaria e Exploração de Petróleo União, das Listas Telefônicas Brasileiras S.A., dos Serviços de Eletricidades S.A. – LIGHT, da Companhia Docas de Santos, da Casa Masson do Rio de Janeiro e da Construtora Rabelo S.A. Posteriormente, participaram do IPES grupos econômicos de grande peso. Alguns de seus nomes mais representativos no mundo empresarial são Celso de Melo Azevedo das Centrais Elétricas de Minas Gerais – CEMIG, Álvaro Borges do Moinhos Rio Grandenses, Henri Burkes do Grupo Gerdau, Felipe Arno do Grupo Arno Indústria e Comércio, Hélio Beltrão e Henrique de Boton do Grupo Mesbla, Henning Albert Boilesen e Pery Igel do Grupo Ultra, Octávio Gouvéia de Bulhões do Grupo Hannah Co., Salim Schama do Grupo Schama, Jonas Bascelo Correa do Banco de Crédito Real de Minas Gerais, Octávio Marcondes Ferraz da Rodger, Valizer e Carbono Lorena, Paulo Ferraz do Estaleiro Mauá, Octávio Frias do Grupo Folha, Antônio Gallotti da Light e Braskan, Flávio Galvão e Júlio de Mesquita Filho de O Estado de S. Paulo, Paulo Galvão do Banco Mercantil de São Paulo, Antonio Mourão Guimarães da Magnesita, Lucas Garcês da Eternit do Brasil Amianto e Cimento, Gilbert Huber Jr. das Listas Telefônicas Brasileiras, Haroldo Junqueira da Açúcar União, Israel Klabin das Indústrias Klabin de Celulose, José Luís de Magalhães Lins do Banco Nacional de Minas Gerais, Mário Ludolph da Cerâmica Brasileira, Cândido Guinle de Paula Machado da Docas de Santos e do Banco Boa Vista, José Ermírio de Moraes do Grupo Votorantin, Mário Henrique Simonsen do Banco Bozano Simonsen, Luís Villares da Aço Villares. (MELO, 2014, p.318).

 

O lado civil do golpe de 1964 contou ainda com a conspiração de governadores opositores ao presidente, com destaque aos 3 nomes do sudeste: Magalhães Pinto, Carlos Lacerda e Adhemar de Barros. O primeiro, inclusive, era o governador de Minas Gerais, estado de onde partiu as tropas lideradas pelo general Olímpio Mourão Filho rumo ao Rio de Janeiro[7]. O segundo, Ademar de Barros, em 1963 junto a industriais paulistas ligados a FIESP, tratou de abastecer o II exército com suprimentos para torna-lo, eventualmente, unidade móvel para confronto, em caso de uma guerra civil[8]. O lado [ou dimensão] civil do golpe também contou com organizações de passeatas públicas, é notório o papel desempenhado pelo braço feminino do IPÊS, a Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE)[9] e outras organizações de cunho conservador nas Marcha com Deus pela Família e pela Propriedade em diversas capitais do país [10].

O IPÊS não era apenas um think tank conspiratório anti-Goulart, possuía um projeto político-econômico bem estruturado para o pós-golpe. Dreifuss demonstra que a elite orgânica do capital nacional, multinacional e associado que estava relacionada ao IPÊS conduziu as políticas públicas nos aparelhos de Estado de acordo com seus interesses quando chegaram ao poder. O IPÊS, logo após o golpe, funcionava como uma espécie de governo privado que fornecia quadros para o governo público, seus associados ocuparam diversos cargos nos aparelhos de Estado, seja instituições públicas, bancos públicos ou ministérios. Cabe ressaltar, inclusive, o caso do ministério do planejamento do governo Castelo Branco, formado por uma equipe basicamente ipesiana e com a liderança do ipesiano Roberto Campos. O caso do ministério do planejamento não foi um ponto fora da curva, o IPÊS possuía seus agentes em diversos setores do Estado, seja na educação e cultura, transporte, trabalho, energia etc. Os altos cargos eram ocupados por ipesianos e esses empresários e tecno-empresários terão um papel fundamental na reforma conservadora do Estado brasileiro pós-64[11].

Empresariado e o Estado Ditatorial.

Após o golpe, as posições centrais dos aparelhos de Estado foram colocadas sob a gestão de empresários e tecno-empresários ligados ao IPÊS. As reformas empreendidas a partir desse momento, porém, tratam do contexto pré-golpe. O Grupo de Assessoria Parlamentar (GAP) do IPÊS, que reunia desde parlamentares associados ao think tank até deputados conservadores anti-Goulart[12], no contexto das reformas de Jango, obtiveram acesso ao projeto proposto e elaboraram um anteprojeto com 23 propostas de reformas estruturais de caráter liberalizante[13]. O que é interessante e importante desse ponto diz respeito a forma como que – após o golpe de 1964 – as reformas do Estado autoritário se deram, o decreto lei 200/67, por exemplo, que trata da reforma administrativa, foi pensado anos dentro do Ipês e executado já na vigência da ditadura por ipesianos que ocuparam cargos nos aparelhos de Estado[14].

O Decreto-Lei 200/67 estabeleceu uma radical reestruturação na administração pública federal. Baseava-se em princípios como planejamento, coordenação, delegação de competência, controle e descentralização por intermédio da administração direta, que se constituía dos serviços integrados na estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios, e da indireta que compreendia as autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, dotadas de personalidade jurídica própria. (BORTONE, 2014, p.70).

 

Nas reformas financeiras dos anos 1964-66 também é possível observar os interesses dos empresários na condução dos projetos. O sistema financeiro brasileiro até aquele momento era descentralizado, os novos padrões de produção exigiam maior centralização de volumes de capital do sistema e com a capacidade de financiamento a longo prazo. Briso Neto menciona, no entanto, que com a reforma houve uma redistribuição para cima, aumentando os lucros dos empresários e arrocho dos salários dos funcionários, potencializando maior acumulo de capital pelo setor empresarial[15]. Dentre as reformas financeiras do biênio mencionado, podemos citar: Reforma bancária (1964); Sistema Financeiro e Habitação (1964);  Reforma no mercado de capitais (1965); Sistema de Crédito Rural no (1965); Fim da lei de Remessas Lucros (1964) e a criação do FGTS (1966)[16]. Todas essas mudanças institucionais do ponto de vista financeiro serão importante para entendermos a que setor econômico elas serviram.

            As políticas financeiras beneficiaram acentuadamente o setor das empresas de obras públicas. A criação do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) – que substituiu o regime de estabilidade empregatícia vigente anteriormente – por meio de uma poupança forçada, criou um fundo de investimento no qual financiou obras imobiliárias através do Banco Nacional de Habitação. O setor empreiteiro nacional deu suporte ao golpe e a ditadura subsequente, é o notório o caso da compra de jornais mais críticos ao governo como o Correio do Amanhã e o Última Hora do jornalista Samuel Wainer por parte de empreiteiros do Rio de Janeiro e o apoio da empreiteira Camargo Correa à Operação Bandeirantes (Oban) em São Paulo. Esses apoios e suportes não vinham sem contrapartidas, o historiador Pedro H. P. Campos menciona que durante o governo de Castelo Branco, esses empresários lançaram uma campanha “em defesa da engenharia brasileira” na qual se mostravam contrários as políticas do então ditador, que privilegiava empresas estrangeiras do setor. Foi com Costa e Silva, nesse sentido, que em 1969 um decreto-lei foi imposto com a finalidade de garantir reserva de mercado para as empresas de engenharia brasileiras, ficou definido que obras no âmbito federal, estadual e municipal seriam de competência de empresas nacionais, o que as beneficiou e fez com que crescessem intensamente, já que a partir desse momento foram tocadas diversas políticas de Estado voltadas para obras públicas no período do dito “milagre econômico” e no II PND já no Governo Geisel.[17]

            Outro setor que apoiou o golpe e se beneficiou da ditadura subsequente foram os grandes banqueiros. O então governador do estado de Minas Gerais, Magalhães Pinto, aqui aparece novamente, proprietário do Banco Nacional, foi um dos principais financiadores do IPÊS.  Além desse banqueiro governante, os casos que chamam atenção são os das famílias Setubal, Villela e Moreira Salles.  Walter Moreira Salles, proprietário do Unibanco, além de ocupar cargos no Estado brasileiro nos anos 1950, foi informante do embaixador dos Estados Unidos no Brasil[18], Lincoln Gordon, notório pela sua participação nas articulações ente golpistas nacionais e o Estado norte-americano[19]. Evandro Vilella, do Itaú, também teve participação em think tanks golpistas chegando à presidência da Associação Nacional de Programação Econômica e Social (Anpes), que segundo o historiador Rafael Brandão, era uma versão paulista do IPÊS. Olavo Setubal, também do Itaú, ocupou cargos em agências estatais pós-64 e foi nomeado, já na gestão Geisel, ao cargo de prefeito de São Paulo, o que demonstra a relação intima entre o Estado ditatorial e o banqueiro. Para além dessas questões mais específicas, as reformas do Estado autoritário no âmbito do Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), especificamente a reforma financeira, beneficiaram os banqueiros na medida que se criou o Banco Central do Brasil – centralizando e subordinando as instituições financeiras sob novas formas de organização – e o Conselho Monetário Nacional que reforçava os laços entre burguesia nacional e internacional ao Estado brasileiro. Além disso, política de estímulo à conglomeração bancária[20], com a justificativa da expansão da capacidade de financiamento de obras de infraestrutura, beneficiou as principais famílias de banqueiros do país. Para se ter uma ideia, em 1964 o Itaú (então Banco Federal de Crédito) possuía 58 agências a maioria no estado de São Paulo, uma década depois, possuía 468 agências pelo Brasil e com capital internacionalizado.[21]

            O setor automobilístico foi, também, um dos mais ativos quando se trata do apoio ao golpe e ao governo ditatorial. Aqui nos interessa demonstrar o caso da Volkswagen, importante apoiadora e beneficiada da ditadura. A fabricante alemã ainda em 1953 se instalou no Brasil como uma montadora, a partir de 1956, já  com incentivo do governo JK, passa a fabricar os carros no país. A volks, assim como outras multinacionais e associados, detinha protagonismo econômico no período anterior ao golpe, porém, sem protagonismo político. Assim como outras multinacionais, a empresa alemã desempenha um papel fundamental no apoio ao golpe de 1964. Com a instalação do governo de Castelo Branco, a Volkswagen alemã injeta 100 milhões de dólares de investimento na filial brasileira, um claro apoio ao governo e ao fim da lei de remessas de lucro. É claro que, o suporte não veio sem contrapartidas, o setor automobilístico foi intensamente beneficiado pelas políticas públicas da ditadura, como a expansão de crédito, que garantiu maior demanda por favorecer o financiamento e consórcio de automóveis. Além disso, a política de expansão da malha rodoviária favoreceu a Volks, já que essa detinha cerca de 50% do mercado nacional de veículos, possibilitando, no ano de 1970, a marca de um milhão de carros produzidos no Brasil pela empresa alemã[22].

Considerando apenas investimentos direto a Volkswagen investiu US$ 119,5 milhões de dólares. Fazendo uso da nova política de remessa de lucros implementada durante o regime militar, a Volkswagen enviou US$ 279,1 milhões no mesmo período representando um déficit de US$ 159,6 milhões a mais remetidos para fora do país. Ainda assim, a Volkswagen do Brasil viu seu capital aumentar a uma média de mais de 100% ao ano em um intervalo de sete anos passando de Cr$ 66,96 milhões em 1965 e atingindo o patamar de Cr$ 657,48 milhões ao final de 1971. (SILVA, 2019, p.?).

Tal fato citado fez com que a Volkswagen entrasse no clima do otimismo da propaganda oficial do regime ditatorial[23]. Em suas publicidades comerciais, a Volks atrelou-se ao discurso ufanista desenvolvido pela Assessoria Especial de Relações Públicas (Aerp), fazendo da publicidade uma propaganda política pró-ditadura. Essa questão, no entanto, será melhor abordada no capítulo 3 desse trabalho.

Por fim, e não menos especial, o setor da imprensa e mídia. Volta e meia ressurge no debate público o apoio e legitimação que os principais jornais da imprensa brasileira deram ao golpe de 1964, isso é um fato, contudo, essas relações são mais profundas. O Grupo Folha, por exemplo, só em 1965 aumentou seu capital cerca de vinte vezes mais que no ano anterior, além de ter adquirido jornais como a Folha da Manhã, Notícias Populares e o Última Hora (jornal de cunho trabalhista)[24]. Além disso, é conhecida e bem documentada o apoio da Folha na montagem do aparelho de repressão da ditadura, a Operação Bandeirantes (Oban) em São Paulo, colocando seus carros a disposição da repressão [25].

A relação mais forte entre empresariado do ramo da imprensa e Estado ditatorial, no entanto, se encontra no conglomerado de mídias das Organizações Globo, visto que sua expansão só foi possível através da relação que mantinha com os governos da ditadura. Antes mesmo do golpe de 1964, o Globo de Roberto Marinho em conjunto com o Jornal do Brasil e Diário dos Associados se uniram na criação da “Rede da Democracia”, onde veiculavam  propagandas anti-Jango no contexto das campanhas de desestabilização do governo trabalhista. Além disso, tanto no jornal impresso quanto na rádio Globo eram transmitidas as peças de propaganda elaboradas pelo Ipês, estabelecendo uma ligação direta entre o think tank golpista e as empresas de Roberto Marinho. Em 1965, é criada a TV Globo com parte do capital advindo do grupo de mídia conservador norte-americano Time Life, no entanto, a constituição em vigor proibia qualquer tipo de participação estrangeira em veículos de comunicação. Uma CPI foi instaurada e em 1969, por meio de um decreto de Costa e Silva, o processo foi arquivado[26].

[...] as Organizações Globo dispunham de importantes aliados. No momento em que a Globo era investigada pela CPI, pelo Conselho Nacional de Telecomunicações (Contel) e pelo Ministério da Justiça, os ministros da área econômica de Castello Branco, Roberto Campos e Otávio Gouvêa de Bulhões, foram à TV Tupi de São Paulo e declararam não haver irregularidades, sustentando que a Time-Life apenas atuara como financiadora. Já a Contel deu um parecer favorável a Globo e um prazo para corrigir suas irregulares. Entre os artífices dessa decisão estavam os membros da Contel, Euclides Quandt de Oliveira e Haroldo C. de Mattos, que mais tarde seriam ministros das Comunicações dos governos Geisel e Figueiredo, respectivamente. (AREAS, 2017, p.207).

A TV Globo não apenas apoiou o golpe que instaurou a ditadura brasileira, como também legitimou ideologicamente enquanto perdurou ao longo dos 21 anos subsequentes. A propaganda ufanista e otimista do “Brasil grande” da Aerp teve na emissora uma importante aliada na difusão do discurso oficial, isso reforçava, inclusive, a ideia da não existência de um órgão voltado para a propaganda do regime, já que em tese era uma empresa independente que estava fazendo uma campanha e não uma “propaganda política oficial”. O Jornal Nacional também teve um caráter essencial para legitimação da ditadura, já que agia como um porta voz extra-oficial do Estado[27].

É claro que os trabalhos feitos sobre o tema empresariado e o Estado ditatorial não se limitam a esses que foram privilegiados aqui, existem uma série de outras pesquisas importantes para o tema. Aqui foi priorizado um recorte mais geral e introdutório sobre a temática na chave do jogo de interesse, no apoio e benefício. A próxima seção será dedicada a relação entre empresariado e a montagem do aparelho de terrorismo do Estado.

Empresariado e o Aparato Repressivo de Estado.

Fica claro, até aqui, que os empresários e tecno-empresários ligados ao capital nacional e multinacional tiveram um papel fundamental na construção e condução do golpe de 1964 em conjunto com os militares no complexo Ipês/Ibad, além de posteriormente ocupando cargos nos aparelhos de Estado de maneira a dar prosseguimento aos projetos que os beneficiassem[28]. A modernização autoritária do Estado durante a ditadura terá como principal vítima o trabalhador. Logo no primeiro dia pós-golpe, fábricas e vilas operárias foram invadidas por militares. Um dos casos mais marcante foi quando em as tropas de Olímpio Mourão Filho, que desciam de Minas Gerais rumo ao Rio de Janeiro na véspera do golpe, invadiram a vila operária da Fábrica Nacional de Motores (FNM), expulsando operários e seus familiares que ali residiam e prendendo outros considerados subversivos[29].

A violência contra os trabalhadores, no entanto, não seu resume apenas a esse caso, as próprias reformas implementadas no biênio 1964-66 foram de uma violenta retirada de direitos dos trabalhadores naquele momento, a começar pela política do “arrocho” salarial, que na prática fez com que nos dez anos seguintes (1964-74) os salários sofressem reajustes anuais abaixo da inflação[30], além, é claro, da  imposição do regime de poupança forçada (FGTS) que substituía a estabilidade empregatícia garantida até então[31], precarizando de forma significativa a qualidade de vida do trabalhador. Soma-se a precarização do trabalho a proibição do direito à greve com a lei 4330/64, o título do Brasil de maior campeão de acidentes de trabalho do ano de 1976 e  a formação e divulgação de “listas negras” por parte das empresas[32]. Se por um lado os trabalhadores sofressem na carne as retiradas de seus direitos, todos esses cortes beneficiaram o empresariado, já que possibilitou um menor gasto em pagamento de salários e até mesmo investimento por parte do Estado em políticas públicas voltadas para algum setor específico, como foi o caso do uso do FGTS para financiar obras imobiliárias, beneficiando empreiteiras[33].

Da mesma maneira que o empresariado articulou e apoiou o golpe de 1964 e colaborou para a reforma autoritária do Estado atrelado aos seus interesses, também participaram efetivamente da montagem dos aparelhos repressivos do Estado. O caso mais importante aqui é o da Operação Bandeirantes (Oban) e o empresariado paulista. A Oban foi criada no contexto pós AI-5, uma operação de combate a “subversão” que envolveu a polícia militar e civil do estado de São Paulo, a polícia federal e o II exército. Embora formada por agentes da segurança pública e do exército nos seus quadros, teve participação crucial do empresariado paulista, já que a Oban surgiu por iniciativa desses empresários e teve sua estruturação financiada por capitação de recursos através desse círculo social[34] que envolvia grandes banquetes, palestras do ministro Delfim Netto e então a “passagem do chapéu”[35] . Um dos principais arrecadadores de recursos para a operação foi o dinamarquês naturalizado brasileiro Henning Boilesen, presidente do Grupo Ultra. Boilesen não se destacou por ser o único arrecadador, mas por ser um dos mais entusiastas da Oban. A Operação Bandeirantes transportou para as suas ações os métodos dos grupos de extermínio ligados ao delegado Sérgio Fleury, logo se tornou sinônimo de tortura e morte. Henning Boilesen não só ajudou a construir essa operação, mas também há evidências que apontam para sua presença em sessões de tortura e até mesmo participação direta em algumas[36].

A Oban ordenou métodos de repressão até então desordenados. Em 1970, com decreto de Médici, a estrutura da operação foi integrada de forma oficial a institucionalidade do Estado no sistemas DOI-CODI (Departamento de Operações de Informação/ Centro de Operações de Defesa Interna)[37].

[...] os DOI- -CODI implantaram-se como instituições oficiais no Rio de Janeiro, Recife, Brasília, Salvador, Belo Horizonte, Porto Alegre, Fortaleza e Belém. Embora houvesse deixado de lado a estrutura extralegal e passasse a contar com dotação orçamentária própria, são notáveis os indícios de que o grande setor privado continuaria a prover o aparelho de repressão com fartos recursos. (MELLO, 2014, p.333.). 

A Comissão Nacional da Verdade (2012-2014) teve um papel imprescindível para descortinar as estruturas, práticas, locais e instituições relacionadas a graves violações de direitos humanos[38]. Possui em seu relatório final um capítulo para tratar da relação dos civis com o golpe e com a ditadura, demonstrando uma série de empresas e empresários que participaram e deram legitimidade ao governo ditatorial. Essa parte do capítulo não esgota os debates sobre o tema envolvendo empresariado e aparato repressivo do Estado, apenas olha de uma forma macro e geral sobre o processo.

Breve conclusão

O que se percebe ao longo das três partes que foram tratadas neste texto é que o empresariado teve um papel ativo no golpe, na reforma autoritária do Estado pós-64 e também na repressão. Este texto é apenas um apanhado geral e introdutório com alguns dos principais trabalhos sobre a temática, ou seja, há estudos que não foram contemplados aqui mas que também são muito importantes para a discussão envolvendo a ditadura empresarial-militar. Por fim, estudos que abordam o período ditatorial brasileiro e lançam luz sobre novos temas de pesquisa, visando o aprofundamento e qualificação das discussões, são salutares para a própria qualidade da democracia do país e também para a reparação histórica das vítimas do Estado ditatorial.


[1] Graduando em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

[2] CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. "Empresariado e ditadura no Brasil: o estado atual da questão e o caso dos empreiteiros de obras públicas". In: Revista Transversos, n o 12, p. 335-358, 2018

[3] DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981.

[4] ASSIS, Denise. Propaganda e Cinema a Serviço do Golpe (1962/1964). Rio de Janeiro: Mauad, 2001.

[5] ASSIS, 2001, p. 23.

[6] MELO, Demian Bezerra de. "Civis que colaboraram com a ditadura". In: Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Vol. II. Brasília: CNV, 2014, p. 303-328

[7] MELO, 2014, p. 314.

[8] LEMOS, Renato Luís do Couto Neto e. "O Grupo Permanente de Mobilização Industrial (GPMI) e o regime ditatorial no Brasil pós-64". In: BRANDÃO, Rafael Vaz da Motta; CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira; MARTINS, Monica de Souza Nunes (org.). Política Econômica nos Anos de Chumbo. Rio de Janeiro: Consequência, 2018, p. 71-102.

[9] ASSIS, 2001, p. 57-66.

[10] MELO, op. cit. p.318.

[11] DREIFUSS, 1981, p.417-455.

[12] DREIFUSS, op. cit. p. 190-193.

[13] BORTONE, Elaine Almeida. "O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) na construção da reforma do estado autoritário (1964-1968)". In: Tempos Históricos (Unioeste), v. 18, 2014, p. 15-16.

[14] BORTONE, op. cit. p.69.

[15] BRISO NETO, Joaquim Luiz Pereira. Cap. 2 – As reformas financeiras de 1964- 1966. In: O conservadorismo em construção: o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e as reformas financeiras da ditadura militar (1961-1966). Dissertação (Mestrado em economia). Campinas (SP), Universidade Estadual de Campinas, 2008, p. 53-57.

[16] BRISO NETO, op. cit. p.58.

[17] CAMPOS, 2018, p.335-358.

[18] BRANDÃO, Rafael Vaz da Motta. "Os Moreira Salles, os Setúbal e os Vilella: finanças e poder no Brasil." In: CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira; BRANDÃO, Rafael Vaz da Motta (org.). Os Donos do Capital: a trajetória das principais famílias do capitalismo brasileiro. Rio de Janeiro: Autografia, 2017, p. 271-314.

[19] O DIA QUE DUROU 21 ANOS. Direção: Camilo Galli Tavares. Produção Pequi Filmes. Brasil, 2012. (77 min.).

[20] MACARINI, José Pedro. "A política bancária do regime militar: o projeto de conglomerado (1967-1973)". In: Economia e Sociedade (Unicamp), v. 16, 2007, p. 343- 369.

[21] BRANDÃO, 2017, p.271-314.

[22] SILVA, Marcelo Almeida de Carvalho. A expansão da Volkswagen do Brasil baseada em políticas econômicas e alinhamento ideológico. In: LEMOS, Renato Luis do Couto Neto e; CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira; BRANDÃO, Rafael Vaz da Motta (org.). Empresariado e Ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Consequência, 2019.

[23] SILVA, op. cit. p?.

[24] SILVA, Carla Luciana. "Imprensa e Ditadura militar". In: Revista História & Luta de Classes, v. 1, 2005, p. 48-49.

[25] MELLO, 2014, p.330.

[26] ARÊAS, João Braga. "Os Marinho: o monopólio brasileiro do setor de comunicação". In: CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira; BRANDÃO, Rafael Vaz da Motta (org.). Os Donos do Capital: a trajetória das principais famílias do capitalismo brasileiro. Rio de Janeiro: Autografia, 2017, p. 196-226.

[27] ARÊAS, op. cit. p.196-226.

[28] DREIFUSS, 1981.

[29] CORRÊA, Larissa Rosa; FONTES, Paulo. "As falas de Jeronimo: trabalhadores, sindicatos e historiografia da ditadura militar brasileira". In: ESTEVEZ, Alejandra; SALES, Jean Rodrigues; CORRÊA, Larissa Rosa; FONTES, Paulo (org.). Mundos do Trabalho e Ditaduras no Cone Sul (1964-1990). Rio de Janeiro: Multifoco, 2018, p. 123-124.

[30] CAMPOS, 2018, p.353.

[31] BRISO NETO, 2008, p.58.

[32] COSTA, Alessandra de Sá Mello da; SILVA, Marcelo Almeida de Carvalho. “Empresas, violação dos direitos humanos e ditadura civil-militar brasileira: a perspectiva da Comissão Nacional da Verdade”. O & S. Salvador, v. 25, n. 84, p. 15-29, jan./mar. 2018.

[33] CAMPOS, Op. Cit. p.353.

[34] MELO, Jorge José de. “O apoio do empresariado paulista à Oban – Operação Bandeirantes. Relatório da Comissão Estadual da Verdade de São Paulo. São Paulo: Alesp, 2014, p. 1-13.

[35] MELLO, 2014, p.330.

[36] CIDADÃO BOILESEN. Direção: Chaim Litewski. Produção: Palmares Produções e Jornalismo Ltda. Brasil, 2009. (92 min.).

[37] MELLO, op. cit. p.332-333.

[38] COSTA; SILVA, 2018.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O OLHAR SOCIAL SOBRE CAPITU: análise e considerações acerca da representação feminina em Dom Casmurro

Uma Geração de Reconstrutores

Três Princípios para a Bênção de Deus